Governo peruano insiste em estrada para “conectar” comunidades isoladas, mas indígenas temem tráfico de drogas e garimpo ilegal.
Em Shintuya, uma comunidade Harakbut no coração da Amazônia peruana, um avião não identificado sobrevoa a reunião onde indígenas denunciam a falta de médicos, água potável e eletricidade. O som os silencia. “São os ‘pipocas’ – aviões bolivianos do tráfico”, sussurra um ancião, mostrando um mapa com áreas de cultivo de coca. A prometida rodovia que ligaria Boca Manu a Boca Colorado (96 km) é vendida pelo governo como solução para emergências de saúde – como a morte de uma grávida de 22 anos em 2023 –, mas os nativos sabem: “Ela trará máfias, não médicos”.
O governador Luis Otsuka Salazar, acusado de crimes ambientais por irregularidades na primeira fase da obra (2015-2016), pressiona pelo segundo trecho. Em 2023, um projeto para declarar a estrada “de interesse nacional” quase passou no Congresso, ignorando três áreas protegidas. Agora, o governo regional tenta ressuscitar o plano sob novo estudo de impacto. “É um atropelo aos nossos direitos”, acusa Rufina Rivera, primeira presidente mulher da Nação Matsiguanga, cujo guarda florestal Gerardo Keimari foi assassinado em outubro por defender suas terras.
Dados do Ministério do Meio Ambiente revelam: 24.317 hectares de floresta perdidos em 2022 para coca e garimpo, 2 defensores ambientais assassinados em 2024 em Madre de Dios, 2 pistas clandestinas operando perto de Shintuya. Enquanto isso, em Shipetiari, crianças estudam em uma escola infestada de fezes de morcego, e mulheres como Giuliana Araoz sobrevivem por sorte: “Quase morri picada por cobra – o antídoto chegou 7 horas depois”.
Especialistas do Observatório IVIS alertam: rodovias na Amazônia peruana têm histórico de aumentar desmatamento e crimes, sem melhorar o IDH. A Interoceânica (Peru-Brasil) é prova: trouxe máquinas para garimpo ilegal, não desenvolvimento. Alternativas como hidrovias seriam 7x mais baratas, mas ignoradas. “Querem a estrada para explorar, não para nos integrar”, desabafa Nicolás Flores, líder Yine de Diamante, onde isolados são filmados por drones do governo para “negar sua existência”.
Em Puerto Azul Mberowe, o posto de saúde está abandonado há 6 anos, e crianças contraem dengue em poças próximas à escola. “Nos vendem a estrada como salvação, mas será nossa sentença”, diz uma professora. Enquanto o barco parte de Boca Colorado – já dominada por garimpeiros de dentes de ouro –, resta a pergunta: quem realmente lucrará com esses 96 km de asfalto?
Noticiaamazonica/BBC